Algumas Notas Sobre A Pós-Produção Legislativa E Sua Análise Pelo Poder Executivo Antes Da Decisão De Sanção Ou Veto (E Seu Abuso): uma fronteira da teoria federalista ainda desconhecida

Introdução

Algumas Notas Sobre A Pós-Produção Legislativa E Sua Análise Pelo Poder Executivo Antes Da Decisão De Sanção Ou Veto (E Seu Abuso): uma fronteira da teoria federalista ainda desconhecida

A decisão a respeito de um projeto tornar-se lei fica ao total alvedrio do Chefe do Poder Executivo, mesmo diante das balizas constitucionais fincadas no caput e no § 1º do art. 66 da Constituição da República. Logicamente, não se ignora que se trata de uma prerrogativa constitucional inata ao jogo de poder e ao sistema de freios e contrapesos, de um poder controlar o outro, com vistas a evitar o abuso ou a prepotência ou preponderância de um poder sobre o outro ou sobre os demais. Não, isso não se ignora. Mas o que se ignora, no âmbito geral dos estudos, é o extremo poder subjetivo, volitivo, sem precisos esteios, que o Chefe do Poder Executivo detém para chancelar uma proposição legislativa que, muitas vezes, não viola o desenho de competências e de iniciativas legislativas estruturadas na Constituição Federal e nas Constituições estaduais, mas é vetada, seja por interpretações jurídicas, ou seja, conveniências políticas nada transparentes.

Tudo isso acaba por revelar uma espécie de acomodação intelectual e – pior – constitucional, que entorpece as relações institucionais e bloqueia inovações, arrojadas e arejadas, de aperfeiçoamento das autonomias estaduais. Em uma só palavra, a manutenção desse estado de coisas impede avanços mais ousados no sentido de se estabelecer um verdadeiro Estado federal, um federalismo conforme nos foi ensinado pelos founding fathers americanos, no século XVIII, nos Estados Unidos, onde a concepção federalista detém uma força de linguagem de fixação de poderes mais autênticos aos estados membros.

É preciso reequilibrar o sistema dos Poderes do Estado, retirando do Poder Executivo a pecha rançosa, ainda contaminada pela ideia monarquista, de concentração de poderes políticos e jurídicos nas mãos do soberano. Temos que enterrar a herança monárquica que grassou no Brasil por mais de três séculos. Aliás, a monarquia como forma de governo foi estupendamente rejeitada no plebiscito de 1993 e, rejeitada a volta da monarquia, devem ser arrastados para os anais da História os poderes do monarca.

Esse estudo visa a lançar luzes em um tema pouco explorado: o Chefe do Poder Executivo e o seu poder de decidir, ilustrado na prerrogativa se sanciona ou se veta um projeto de lei, estudo este encetado dentro do contexto jurídico de encerramento do processo legislativo. Pergunta-se: há um parâmetro jurídico para sancionar ou vetar projetos de lei? A resposta parece simples. De pronto, dir-se-á: sim, o parâmetro é a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do projeto de lei ante o cotejo da sua iniciativa ou matéria com a Constituição Federal ou com a Constituição estadual, ou sua conveniência ou inconveniência perante o interesse público. Essa resposta é correta, até porque advém do texto constitucional, residente no art. 66 e seus parágrafos. Se aquiescer, sanciona; se considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente.

É valiosa a lição de José Afonso da Silva: são dois os motivos constitucionais para o veto: a) existência de inconstitucionalidade; b) contrariedade aos interesses nacionais. Mas esses motivos dependem do julgamento do titular do poder de veto; subordinam-se a um juízo subjetivo e particular, no momento de sua atuação […] Por aí se vê que se trata de um poder sem limites, no que tange ao seu exercício (SILVA, 2006).

Dentro desse contexto apresentado por José Afonso da Silva (2006), vê-se que existem outras questões que incidem nesse momento entre o protocolo do autógrafo legislativo no setor competente do Poder Executivo e a decisão publicada no Diário Oficial. São 15 (quinze) dias úteis de suspense? São 15 (quinze) dias úteis de negociações entre o Legislativo e o Executivo? São 15 (quinze) dias úteis de um jogo político ou de análise técnica sobre o tema sobre o qual o Chefe do Poder Executivo está debruçado?

Assim, as razões do veto por interesse público são de fato derivadas da ausência desse interesse público, ou fatores subjetivos imperam, como, por exemplo, a retaliação política? Se é por inconstitucionalidade, advém a pergunta: tudo é inconstitucional? Daí reclamando o papel das assessorias técnicas e a presença do interesse político. O que disso tudo prevalece? Trata-se de uma estratégia a ser repensada? Ao se esticar ainda mais a discussão, podemos dizer que há um possível abuso do poder de veto? Mas e a separação de poderes? E o federalismo? E a harmonia? E a impessoalidade? Tudo isso pode denotar em um desequilíbrio dos Poderes expondo, como resultado, um ato antifederalista e, por consequência, um ato antidemocrático. O Estado não é mais unitário; é, há muito, federal, e a essência do federalismo não é somente um conceito geográfico; a essência do federalismo é a democracia, pois induz obrigatoriamente a participação das partes na decisão do todo. Há uma ilusão monarquista a ser extirpada de vez do nosso sistema político e constitucional, e há uma necessidade urgente de se estabelecer um diálogo intragovernamental, como corolário do Estado Democrático de Direito, um diálogo não só político, mas um intercâmbio técnico-político entre Poderes em prol da sociedade.

Antes de entrarmos no tema proposto, advertimos que não o esgotaremos, por ser ele uma fronteira ainda inóspita no constitucionalismo pátrio. Lancemos indicações de caminho para avivar um debate sobre a necessária atualização da interpretação do caput e do § 1º do art. 66, da Constituição da República, uma vez que o valor democrático não se encerra com as eleições, mas subjaz em tudo que é feito em nome do Estado, a favor da sociedade e em benefício do Povo.

 

 

Da sanção e do veto

Em primeiro lugar, devemos situar o tema dentro do sistema de freios e contrapesos que anima a separação de poderes. Prevista no art. 2º da Constituição Federal, são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Cada poder freia o outro, ou faz um contrapeso, uma vez que na sempre atual lição de Montesquieu, um poder sem freios tende ao abuso, à usurpação de funções do outro. A ideia de desconcentração de poderes é justamente esta: dividir organicamente as funções de Governo (produção das leis, execução das leis e aplicação das leis para a solução de conflitos) para que um poder não se sobreponha ao outro, para não se retornar à antiga concentração (e abuso) de poderes enfeixados nas mãos de um único soberano (rei, imperador) ou de uma casta ou elite (nobreza, alto clero, aristocracia).

Por isso, a ideia de separação de poderes contém, para além da independência que é inata a cada um que age dentro da sua tarefa específica de ou produzir leis, ou de executar leis, ou de aplicar as leis para a solução de conflitos, a ideia de que haja harmonia na convivência para a condução do governo de um Estado, de que um poder não se sobreponha ao outro, ou um usurpe as funções do outro, ou que um anule, de forma antijurídica e à margem das exceções constitucionais, as atividades e os atos do outro.

Recortando nossa análise à relação Legislativo/Executivo, podemos dizer que a sanção e o veto inserem-se dentro da concepção de separação e de harmonia. São dois atos políticos (atos de governo que emanam diretamente da Constituição) que encerram o processo legislativo, ou, no caso dos vetos, prolongam-no, pois dependem de nova análise pelo Legislativo, que pode manter ou derrubar o veto. Por isso que se trata de um prolongamento do processo legislativo. Aliás, interessante a lição de Waldemar Martins Ferreira:

“Não fulmina o veto de pronto o projeto ou os dispositivos não sancionados. Suspende-os. Deixa-os no ar, como advertência, a reclamar novo exame por parte dos representantes do povo; eis porque o veto tem que ser justificado” (2019, p. 210).

E o que a sanção e o veto significam juridicamente? Rafael Vargas Hetsper nos dá um sintético panorama jurídico sobre esses dois institutos condizentes com o processo legislativo:

“A alternativa que se contrapõe ao veto é a sanção. Tal medida significa a identificação dos interesses entre Legislativo e Executivo, e, regra geral, é por sua incidência que o projeto de lei transforma-se em lei de fato e de direito. Diferentemente do veto, que só se materializa por meio de uma manifestação de vontade formal expressa, a sanção pode ser tanto expressa quanto tácita: ela é expressa quando o Presidente aquiesce com o projeto de lei lhe enviado à deliberação pelo Legislativo, e tácita quando o Presidente não se manifesta sobre o projeto de lei que foi a ele remetido no prazo constitucional de 15 dias úteis, os quais são contados da data de recebimento (art. 66, § 3º, da CF de 1988). Por ser a sanção, juntamente com o veto, uma das duas possibilidades de manifestação do Presidente quando da etapa do processo legislativo que lhe compete deliberar, em não sendo essa efetuada no momento oportuno, está prescrita a possibilidade de confirmação do projeto de lei aprovado no Legislativo por parte do chefe do Executivo. Mesmo que o Congresso Nacional delibere em reunião conjunta pela superação do veto, o destino processual da nova lei é a imediata promulgação, consoante prescreve o art. 66, §§ 5º e 7º, da CF de 1988. Com a intenção de caracterizar o poder de veto em sentido amplo, com vistas a evidenciar a sua natureza dual (misto de jurídico e político) e o seu regramento atualmente vigente no Brasil, o presente artigo apresentou seus conceitos e enfatizou o papel por ele desempenhado como um dos elementos do sistema de freios e contrapesos no Estado moderno, o qual tem como função precípua a estabilidade dos sistemas de governo fundados nos princípios da teoria da separação dos poderes concebida por Montesquieu em meados do século XVIII. Na mesma medida, indicou alguns elementos relativos à trajetória histórica do veto e distinguiu os seus tipos, ainda que não existentes no modelo brasileiro. Fundamentalmente, a complexificação das relações sociais ao longo do tempo promoveu o aperfeiçoamento do instituto conforme as necessidades e os interesses particulares de cada Estado, o que gerou a multiplicação das maneiras pelas quais o seu detentor poderia fazer uso dessa prerrogativa institucional. Demais, o trabalho buscou detalhar o modo como o poder de veto está presentemente disciplinado no ordenamento jurídico nacional, para isso amparando-se na CF de 1988. Basicamente, a forma prevista é a expressa, nos tipos total ou parcial, por razões de inconstitucionalidade e/ou contrariedade ao interesse público. Em relação aos termos, os prazos do Executivo são de 15 dias úteis para a análise do projeto de lei e 48 horas para a comunicação do veto ao Legislativo. Da parte do Legislativo, por sua vez, o prazo para reflexão sobre razões de veto advindas do Executivo é de 30 dias, sendo que a sua apreciação ocorre sob a forma secreta, na qual o quórum para a derrubada é a maioria absoluta” (2012, p. 224-225).

Portanto, a sanção é a aquiescência, é a aceitação do projeto. Ao aquiescer, o Chefe do Poder Executivo adere à iniciativa legislativa do Poder Legislativo; ou do Poder Judiciário (naqueles projetos que sejam da iniciativa exclusiva dos tribunais); ou chancela a sua própria iniciativa, nos casos mais comuns de projetos de organização da Administração Pública (Direta ou Indireta); ou de projetos de conteúdo eminentemente financeiro, como aqueles que veiculam as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual. Sancionado, ocorrerá a proclamação, que é o ato conjugado ao ato de sanção do projeto de lei e que significa a ordem de sua divulgação, qual seja, de tornar público e cogente o que era projeto e transformou-se em lei, deflagrando seus efeitos próprios: vinculação, abstração e generalidade.

Já em relação ao veto, as razões de sua existência se ampliam. Aqui, há nítido conflito entre os Poderes, uma vez que um impede que uma determinada proposição ganhe foros de vinculação, abstração e generalidade, tendo em vista a imposição de poder, como obstáculo à veiculação de norma inconstitucional ou de norma que viole o interesse público. Alexandre de Moraes, em seu Presidencialismo, didaticamente conceitua e explica a razão de existência do poder de veto:

“No tocante ao veto presidencial, consagra-se essa possibilidade como importante instrumento de controle do exercício da competência legislativa do Congresso, permitindo-se ao Presidente da República, como lembrado por Montesquieu, a faculdade de impedir eventuais abusos na produção legislativa, pois, se o Poder Executivo não tiver direito de frear as iniciativas do corpo legislativo, este será despótico. Porque, podendo atribuir-se todo poder imaginável, aniquilará os demais poderes. O veto, portanto, será a manifestação de discordância do Presidente da República com o projeto de lei aprovado pelo Poder Legislativo, consagrando-se como técnica de controle de exercício do poder político, para garantia do Estado de Direito” (2004, p. 192-193, grifo do autor).

Explicada a razão política da existência da sanção e do veto, vejamos agora os motivos pelos quais um projeto de lei poderá ser obstado pelo Chefe do Poder Executivo.

 

Veto e suas razões: veto por interesse público (VP) ou veto por inconstitucionalidade (VJ)

Sanção, como vimos, é adesão à proposta que foi aprovada pelo Poder Legislativo, seja ela expressa ou em sua forma tácita, o que demonstra, por si, não existirem tantas dúvidas sobre essa prerrogativa-poder, contudo o mesmo não se pode dizer quanto ao veto. Pelo sistema constitucional de prerrogativas do Chefe do Poder Executivo, a Casa na qual tenha sido conclusa a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República que, não sendo motivo de sanção, poderá considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente (art. 66 e § 1º, CR).

Assim, existem dois motivos que poderão fundamentar o veto do Executivo: veto por interesse público, ou também denominado veto político (VP); ou veto por inconstitucionalidade (VJ), ou denominado veto jurídico. Embora o veto seja o obstáculo que impede a conversão de um projeto em uma lei efetivamente, os motivos e as razões que os escudam são díspares. O projeto ou é inconstitucional ou é inconveniente, a despeito da sua constitucionalidade. E poderá o projeto ser parcialmente vetado pelos dois motivos, parte dele sendo inconstitucional e parte dele sendo inconveniente. Essa é uma possibilidade resistente no chamado veto parcial, no qual o Chefe do Executivo, com autorização advinda do §1º do art. 66 da Constituição Federal, poderá aquiescer parcialmente em relação ao projeto de lei, sendo que a Constituição não distingue ou proíbe o uso concomitante dos dois motivos em um mesmo projeto. Nesse sentido, mais uma vez Alexandre de Moraes:

“O Presidente da República poderá discordar do projeto de lei, ou por entendê-lo inconstitucional (aspecto formal) ou contrário ao interesse público (aspecto material). No primeiro caso teremos o chamado veto jurídico, enquanto no segundo, o veto político. Note-se que poderá existir o veto jurídico-político” (2004, p. 194).

O veto por interesse público, ou por inconveniência, tem uma natureza nitidamente política, embasado naquele poder de frear comportamentos do Poder Legislativo que excedam, sobretudo, os aspectos financeiros; que extrapolem os limites orçamentários ao aumentarem, por exemplo, benefícios previdenciários ou sociais que, apesar de não serem inconstitucionais tais benesses – uma vez que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, conforme prevê o art. 203 da CF – devem se ater à responsabilidade fiscal e ao limite de gastos em correspondência com o montante arrecadado em receitas.

Por outro lado, é inegável que o poder de veto político detenha uma carga subjetiva muito grande e, como apontou José Afonso da Silva (2006), sem limites, e, lamentavelmente, não poderá ser confrontado esse poder perante o Poder Judiciário, exceto em seus aspectos formais. O veto político, malgrado não possa ser enfrentado pelo Poder Legislativo ou por outros interessados, perante o Poder Judiciário poderá ser apreciado novamente pelo Legislativo que, por força de interpretação do disposto no artigo 66 e nos parágrafos desse mesmo artigo, após ser comunicado pelo Chefe do Executivo sobre os motivos do veto, aprecia-lo-á no prazo constitucional e poderá, por maioria absoluta, rejeitar o veto, devolvendo o projeto para nova apreciação do Executivo, ou poderá manter o veto, com o consequente arquivamento da proposição legislativa. De tudo isso, em nosso modo de ver, extrai-se uma interpretação do texto constitucional que dá dicas sobre a sobrevivência do projeto enquanto existir o veto, e a regulamentação a miúde do procedimento de apreciação do veto, guardados os preceptivos constitucionais de quórum e prazo, que se dará na forma do regimento da respectiva Casa de Leis (no caso, se for no âmbito federal, competirá ao Congresso, união das Casas alta e baixa, apreciar o veto; no âmbito dos estados e dos municípios, onde vigora o sistema unicameral, a apreciação competirá, respectivamente, às Assembleias Legislativas e às Câmaras Municipais).

Já em relação ao veto jurídico, por inconstitucionalidade, a questão, a princípio, seria mais fácil de vislumbrar, uma vez que basta o cotejo do projeto de lei com o texto da Constituição e, como resultado, verificar, dentre os aspectos de constitucionalidade formal e material, se o projeto se coaduna com o texto máximo do ordenamento jurídico. Trata-se de uma aparente espécie de controle preventivo de constitucionalidade. Porém, como dissemos, só a princípio é que a questão transpira certa facilidade; isso porque a questão do veto jurídico (e aqui inserimos também, em igualdade de gravidade, o veto político) demanda preocupações institucionais maiores, que desde há muito atormentam a vida política e constitucional brasileira.

Essa preocupação encontra explicação plausível em Waldemar Martins Ferreira, que, dentro de uma narrativa histórica do Direito Constitucional brasileiro, expõe:

“O veto é privativo do presidente da República. Ato é esse por via do qual ele se recusa a cooperar com a sua sanção para que o projeto se transfigure em lei ou dele extirpe os dispositivos inconstitucionais ou inconvenientes. […] Não era comum o veto no regime da Constituição de 1891. Não o era porque somente poderia abranger todo o projeto de lei. Tinha que ser integral. Dispunha ela, no § 1º do art. 37, que se o presidente da República julgasse inconstitucional, ou contrário aos interesses da Nação, o projeto enviado a sua sanção, negá-la-ia dentro de dez dias úteis, com os motivos da recusa. Exigia essa circunstância que o presidente da República acompanhasse de perto e atentamente os trabalhos parlamentares, de molde a evitar os dispositivos ou emendas inconvenientes. Criou-se, para isso, a figura do líder da maioria, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal […] Era aquele o porta-voz do governo. Era ele quem orientava as votações. Por isso, antes do início das sessões, ele ouvia o governo, cujo pensamento representava […]” (2019, p. 210-211).

A oposição de veto é algo politicamente delicado; não se discute. Convive, entretanto, ao lado da harmonia entre os Poderes, seja no palco dos acontecimentos ou seja nos bastidores, com uma real tensão entre os Poderes, capaz de deflagrar crises políticas e institucionais. Waldemar Martins Ferreira (2019) bem observou essa tensão, que vem de longa data e está localizada, até de forma natural, nos países de regime democrático, onde o convívio entre os contrários e os debates gerados revelam normalidade, um debate entre teses, antíteses até se chegar – o que sempre se espera – a uma síntese. O debate gerado por imposição de vetos há de ser tido como natural, pois há liberdade no ambiente político, institucional e constitucional. Sociedades nas quais esse debate não ocorre podem ser sinônimo de falta de liberdade política, sinônimo de regime de exceção, de falta de democracia; em suma, ditaduras.

Assim, o que se espera de um debate a respeito da imposição de um veto, total ou parcial, é, ao final, alcançar o consenso, ou a pacificação política. O que não se pode concordar é quando esse poder de veto extrapola ou se excede dentro da normalidade institucional e constitucional, a revelar um desequilíbrio de forças políticas em prol do governo e em detrimento do Parlamento e das minorias políticas. Exemplo desse desequilíbrio se dá quando há um expressivo aumento de vetos em face da produção legislativa do Legislativo, fundados os motivos que ensejam o veto em inconstitucionalidade, mas uma alegada inconstitucionalidade desenfreada.

Daí surge a indagação que reputamos o núcleo central deste estudo: tudo é inconstitucional? Ou será que há um império da técnica em contraste com o respeito à vontade dos representantes do Povo? Ou ainda: será que não há um comodismo em não se inovar dentro do federalismo, sobretudo do nosso federalismo brasileiro, no qual o espaço da competência legislativa dos Estados membros é apertado, é exíguo ou concorre com demasiada preponderância das competências legislativas da União, sendo o art. 24 da Constituição Federal um exemplo disso? Ou é a conveniência do jogo de poder, diga-se, de um grande poder subjetivo enfeixado nas mãos do Chefe do Executivo?

Tentemos analisar essa indagação e deslocá-la para uma discussão mais ampla, que congregue temas como abuso do poder de veto e a separação de poderes, bem como o desequilíbrio entre os Poderes como ato anti-federalista.

 

Tudo é inconstitucional: o abuso do poder de veto, a separação de poderes e o desequilíbrio dos Poderes como ato anti-federalista?

A indagação é eloquente: tudo é inconstitucional? Será que o Poder Legislativo é tão despreparado ou desatento para se desviar dos caminhos traçados na Constituição Federal na seara das competências legislativas, na produção legislativa em prol da sociedade? A resposta é negativa: não! O Poder Legislativo não é nem despreparado, nem desatento para se desviar dos caminhos traçados na Constituição Federal na seara das competências legislativas, muito menos é um mero produtor de normas jurídicas, populistas ou não.

Logicamente, outros fatores, de índole jurídico-formal e também material, obstam a produção legislativa na escala pretendida pelos legisladores, mas podemos dizer com toda certeza: nem tudo aquilo que o Chefe do Executivo entende por inconstitucional, para opor o veto, é, de fato, inconstitucional. Falta, sim, com o devido respeito, uma certa dose de coragem, bem como a construção de esforços interpretativos para saltar sobre uma espécie de comodismo que se apoderou das instâncias decisórias pertinentes e provoca uma hipertrofia constitucional do poder de veto, seja na ensimesmada prerrogativa do Chefe do Poder Executivo fundada em raisons d´état ou por motivações políticas (de estratégia política), ou seja no seu assessoramento técnico, muitas vezes ainda atrelado a um pensamento jurídico conservador, desaguando no que se pode denominar abuso do poder de veto, um defeito do nosso constitucionalismo, uma vez que expõe uma rotina tanto de 1) negação da vontade popular quanto de 2) negação da formação federalista do Estado.

Reflitamos um pouco, a seguir, sobre essa dupla negativa que, no fundo, demonstra um invisível incômodo com os preceitos constitucionais republicanos, muito mais presente na figura dos Chefes do Poder Executivo, agastados com as peias parlamentares; peias essas indissociáveis com o regime democrático republicano. Diga-se, aliás, que no âmbito dos estados membros, a ânsia pelo veto sobe a alturas maiores, haja vista o estreito campo de competências legislativas concedidas a esses entes e às Assembleias Legislativas. Por isso, o que se diz aqui sobre a relação Presidente da República e Congresso Nacional acentua-se, ainda mais, na relação Governador e Assembleia Legislativa.

E na continuidade das possíveis causas que desarranjam essa relação decorrente de um aparente abuso do poder de vetar, comecemos invocando, novamente, Waldemar Martins Ferreira, que sintética, mas objetivamente, sem rodeios, esclarece, por meio do filtro da história constitucional, a causa desse mal político que fortalece a figura do veto em detrimento de um saudável diálogo entre os poderes: “o veto, até então, abria crise política, pela explosão do conflito entre o poder executivo e o poder legislativo. Mesmo depois de instituído o veto parcial, que acresceu o poderio do presidente da República, [o veto] constituía raridade. Agora, não. Não se interessa muito o presidente da República pela elaboração legislativa. Num ou noutro caso é que o líder da maioria intervém, de molde a obter, nas comissões e no plenário, o expurgo das leis e disposições inconstitucionais ou inconvenientes. Quando os projetos de leis sobem à sanção é que o presidente da República entra a examiná-los, de molde a vetá-los total ou parcialmente. Ele, por isso, usa e abusa do poder de vetar.”

A Câmara dos Deputados e o Senado Federal sob a direção da mesa deste reúnem-se em sessão conjunta para deliberar sobre o veto. Representa este força considerável posta nas mãos do presidente da República, pois que, como observou exímio monografista, ela lhe permite, sem maior esforço e no lapso de tempo suficiente para escrever não e algumas frases explicativas, amainar o resultado de longa e árdua batalha parlamentar. Pode o presidente, sem riscos e com probabilidades de sucesso, deter as leis que o desagradem; e, pela ameaça do veto, sempre suspensa sobre as cabeças dos representantes, imprimir à legislação o sentido que deseje.

Na mesma linha, Manoel Gonçalves Ferreira Filho escreve que foi o veto concebido pela doutrina clássica segundo a lição de Montesquieu, ou seja, como faculté d’ empêcher. Visa, pois, a habilitar o chefe do governo a impedir, ou pelo menos a dificultar, que se transformem em lei disposições inconstitucionais ou inconvenientes para o bem comum. É, por isso, o veto um meio de controle da ação parlamentar e como tal foi ele recebido e estruturado no Direito Constitucional brasileiro. A experiência, porém, indica um outro uso do poder de vetar parcialmente os projetos de lei. Uso que é verdadeiro abuso. Ora, como o veto exige maioria qualificada para restaurar a fração vetada, se o Presidente lograr apoio, conseguirá impor essa mudança, obtida através do veto parcial. Trata-se, indubitavelmente, de um abuso do poder de vetar, contudo esse abuso foi tolerado pela jurisprudência, inclusive pelo STF.

Com igual brilhantismo, a crítica engenhosa de Gilmar Ferreira Mendes, sob o viés do argumento do veto baseado na inconstitucionalidade, é fácil ver que o veto de um projeto de lei sob o argumento da inconstitucionalidade outorga ao Executivo uma faculdade de enorme significado num sistema constitucional, que, como visto, privilegia o controle judicial de constitucionalidade de leis. Não são raros os autores que identificam aqui a configuração de um modelo preventivo de controle de constitucionalidade. É verdade que esse poder há de ser exercido cum grano salis, não se confundindo com aquele outro, que autoriza o Chefe do Executivo a negar a sanção a projetos de lei manifestamente contrários ao interesse público.

Evidentemente, a vinculação de todos os órgãos públicos à Constituição não permite que o Chefe do Poder Público se valha do veto como fundamento na inconstitucionalidade com a mesma liberdade com que poderá utilizar o veto com base no interesse público. Dir-se-á, porém, que eventual utilização abusiva do veto com fundamento na suposta inconstitucionalidade da proposição poderia ser sempre reparada, pois estaria sujeita à apreciação e, portanto, ao controle do organismo parlamentar competente. Essa resposta é evidentemente insatisfatória, porque admite que um órgão público invoque eventual inconstitucionalidade sem que esteja exatamente convencido da sua procedência. Isto relativiza, de forma inaceitável, a vinculação dos Poderes Públicos à Constituição.

Por outro lado, parece inequívoco que a apreciação do veto pela Casa Legislativa não se inspira exatamente em razões de legitimidade. A ausência de maioria qualificada fundada em razões meramente políticas implicará a manutenção do veto ainda que lastreado em uma razão de inconstitucionalidade absolutamente despropositada. A indagação que subsiste diz respeito à possibilidade de que se pudesse judicializar a questão constitucional, tendo em vista a aferição da legitimidade ou não do fundamento invocado. Em um sistema de rígida vinculação à Constituição, parece plausível admitir, pelo menos, que a maioria que garantiu a aprovação da lei deveria ter a possibilidade de instaurar tal controvérsia.

Quanto ao instrumento processual adequado, deve-se mencionar que o STF tem admitido a utilização do mandado de segurança em situações típicas de conflito entre órgãos. Assim, esse controle de legitimidade também estaria submetido ao controle judicial. Chegamos, então, conduzidos com segurança acadêmica por intermédio dessa brecha doutrinária aberta pelo ministro Gilmar Mendes, ao ponto que almejamos e donde brotam os questionamentos: qual seria a fonte desse abuso? Seria ele um exacerbado formalismo técnico? Um rigor de intransigência política? Um jogo de cena política, ou beija mão? Ou seria um cipoal desses elementos? Enfim: tudo é inconstitucional?

A essência do Estado de Direito é a submissão de todos os Poderes à lei em sentido amplo, à Constituição especialmente. Essa ideia de submissão vincula-se à lei, e não à vontade pessoal do Chefe do Executivo, muitas vezes estofada com propósitos políticos, e nem à vontade pessoal do técnico que auxilia o Chefe do Executivo na análise pós-produção legislativa, até porque vigora o princípio da impessoalidade e por isso não há vontade pessoal, mas vontade geral depositada na Constituição como antídoto antidespotismo, como antídoto antitirânico.

Como vimos, a Constituição Federal, em seu art. 2º, impõe que os Poderes sejam independentes e harmônicos entre si. São harmônicos, são independentes, mas não podem ser tirânicos, não podem ser usurpadores da representatividade ungida nas urnas ou, em uma palavra, não podem ser poderes abusivos; e desse abuso a doutrina é testemunha, pois acaba por se refletir na prerrogativa do Executivo de barrar projetos de lei que, ressalvados aqueles frontalmente inconstitucionais ou inconvenientes, são produtos dos anseios populares e sociais.

Que o sistema de freios e contrapesos controla e garante a independência entre os Poderes nós sabemos, mas não franqueia o abuso. A harmonia exige e reclama diálogo entre os Poderes, sobretudo na pós-produção legislativa, na fase de análise pelo Poder Executivo antes da decisão de sanção ou veto. No entanto, a produção pós-legislativa é uma zona cinzenta, praticamente não estudada, seja no processo legislativo, seja no arranjo político-constitucional.

As razões de sanção são consideradas despiciendas, uma vez que a sanção significa a adesão ao que foi proposto no projeto de lei e, com a publicação, o que era uma expectativa torna-se uma obrigação de obediência social cogente, mesmo que o conteúdo formal ou material do projeto seja inconstitucional ou inconveniente e o Chefe do Executivo o faça por liberalidade política, afago ao Parlamento, a um grupo partidário (a maioria que aprovou o projeto na Casa Legislativa), ou para acudir, simplesmente, um único parlamentar. Enquanto, pelo menos no que toca ao quesito da inconstitucionalidade, não for a lei contestada pelas vias de controle de constitucionalidade própria perante os tribunais competentes (Supremo Tribunal Federal ou tribunais de justiça quando se atende ao disposto no art. 125, § 2º, da CF), deve-se obediência à lei e seu cumprimento.

Isso não se pode dizer em relação às razões de veto, que é a justificativa, ou melhor, o motivo pelo qual o Chefe do Poder Executivo adotou para barrar o projeto de lei. A motivação do veto é uma exigência constitucional, advinda do § 1º do art. 66 da Constituição Federal, na qual se lê, com clareza, que, se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto. É a motivação do veto que guiará o Parlamento quanto aos próximos passos procedimentais da continuação do processo legislativo: ou acolhe os motivos e acata o veto e por consequência o projeto é arquivado; ou não concorda com os motivos, derruba o veto e devolve, nos termos do § 5º do art. 66, para promulgação, ao Presidente da República, que terá duas alternativas, que são a de promulgar a lei ou silenciar (§ 7º do art. 66, CR), não tendo mais a prerrogativa de devolver com novo veto ao Poder Legislativo, eis que isso poderia gerar um duradouro e pouco produtivo ping-pong institucional. Decorrido in albis o prazo da promulgação, essa competirá ao Presidente do Senado ou, se este não o fizer, ao Vice-Presidente do Senado.

As razões de veto ou motivos esclarecem ou, pelo menos, procuram esclarecer o que levou o Chefe do Executivo a vetar. Aqui é o outro ponto da nossa inquietação. Esse é um momento delicado e nada explorado, porque demonstra que a oposição de veto é algo a ser melhor analisado, ou reelaborado, para que esse ato privativo do Chefe do Executivo não se torne uma rotina mecânica pautada em interesses políticos ou em comodismos e, principalmente, para que não seja considerado um ato anti-federalista. E por que seria um ato anti-federalista? Porque, ao negar o projeto, pode o Chefe do Executivo estar a negar a própria autonomia do Estado membro ou deixar ousar no sentido do alargamento e da consolidação dessa autonomia, pelo menos no âmbito da autonomia legislativa. Se a autonomia legislativa dos Estados membros é algo inegociável e ínsito ao conceito de federalismo, ela, autonomia legislativa, todavia, sofreu podas pelo constituinte originário, que deixou, todavia, trilhas legislativas que poderiam ser melhor exploradas para reafirmar a autonomia dos entes federados no concerto constitucional.

Estar dentro de um Estado federal significa compartilhar não só o uso de um território nacional comum, mas, também, compartilhar os princípios, republicano e, especialmente, o democrático, uma vez que as partes concorrem, em igualdade de condições e votos, com a formação da vontade legislativa nacional. Não é à toa que, independentemente do tamanho e da pujança econômica de cada Estado membro, todos serão igualmente representados no Senado Federal, que é Casa representativa dos Estados no Congresso Nacional, sendo que, nos termos do caput e do § 1º do art. 46 da CR/88, o Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário, e cada Estado e o Distrito Federal elegerão três Senadores, com mandato de oito anos.

Por isso que, aqui, cai como uma luva a lição de Norberto Bobbio:

A origem do equívoco está em considerar o federalismo pura e simplesmente como uma questão de fato, enquanto, na realidade, é uma questão de princípio. O federalismo é o princípio mais profundamente inovador da era contemporânea e, como tal, ou encarrega-se de toda a sociedade civil e transforma-a acima e abaixo dos Estados nacionais, e então não há razão pra usar de sutilezas a respeito da diferença entre federalismo europeu e federalismo estatal, ou acredita-se ser possível pô-lo em prática nesta ou naquela sociedade, e então o problema que é seu, o problema da transformação da sociedade civil, no sentido de um maior fortalecimento da liberdade, não será resolvido, mas apenas adiado, e pode parecer em um ou outro lugar realmente anacrônico.

Quando se diz que o federalismo marca o rumo da história contemporânea, no sentido de uma maior efetiva ação de liberdade, significa dizer que o federalismo executa, no âmbito da sociedade civil, o acordo entre o poder central e os grupos periféricos, com um maior respeito às autonomias das partes individuais no que se refere ao todo e com um menor fortalecimento do todo no que se refere às partes, levando-se em conta o que ocorreu nos sistemas históricos até aqui conhecidos.

No federalismo, viam exclusivamente uma questão de fato os primeiros e logo superados federalistas monárquicos; viam, por sua vez uma questão de princípio, os federalistas republicanos, primeiro entre todos Cattaneo, que afirmava o federalismo é a teórica da liberdade, a única possível teórica da liberdade; e ainda mais inflamado: a liberdade é república; e república é pluralidade, ou seja, federação. […] Deve ficar claro que aquilo que se pode alcançar hoje com o federalismo não é o desmembramento de um Estado unitário, mas a destruição de uma estrutura estatal considerada obstáculo à completa e genuína atuação daquela democracia que, mesmo colorindo-se, ao passar de partido em partido, de todas as cores da íris, é o lugar supremo […] federalismo como teórica da liberdade e nova democracia são termos indissoluvelmente ligados. O problema, diga-se de passagem, é ficar alerta e velar para que o federalismo de hoje seja realmente a atuação de uma democracia articulada, sinal de vitalidade do novo Estado (2001, p. 16 e 25).

Portanto, o momento de pós-produção legislativa que se entrelaça com a decisão de sanção ou veto reclama, além de ser atrelada à harmonia, reclama diálogo – diálogo político e diálogo técnico; diálogo político e diálogo com espírito federativo, diálogo esse que deve ser perene e incidir, diga-se, permanentemente na tramitação do processo legislativo. Obstar a autonomia sob o pretexto de invasão de competências, sob a capa de inconveniência, sob o argumento de que o STF não permite o aumento de poderes que são inerentes ao Poder Legislativo em seu mister de controlador do Poder Executivo, é premiar o unitarismo, o centralismo, o absolutismo, o despotismo. Somente um diálogo franco, impessoal e transparente, que transcenda o campo político e abrace os aspectos políticos e técnicos é capaz de promover um equilíbrio harmônico na independência que deve imperar entre os poderes. Sair da zona de conforto e ousar, é a atitude que o Povo espera dos seus representantes. Se necessário for, que se institua o conflito intersubjetivo de interesses perante o Supremo Tribunal Federal ou por meio de emendas à Constituição por iniciativa das Assembleias Legislativas para que se amplie o rol de competências dos Estados membros. É essa ousadia que o hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes conclamava aos Estados membros em uma palestra na Assembleia Legislativa no distante ano de 2003:

Se as Assembleias Legislativas – e não apenas uma, mas todas as Assembleias, porque isso interessa a todas elas e a toda a população dos vários Estados – comprarem essa briga e ampliarem a interpretação do que é competência concorrente, é possível puxar, sem tirar as normas gerais da União, e essa é a verticalização de competência, as normas aplicáveis nos dia-a-dia para os estados. […] Com isso ampliaríamos a força do Parlamento Estadual que representa mais diretamente os anseios do povo. […] Para encerrar, acredito nestes dois pontos: insistir a Assembleia Legislativa com o apoio dos juristas do Estado, do Poder Judiciário em utilizar até avançando o sinal, porque daí corta o avanço, vai balanceando nas competências concorrentes. Em matérias em que a União ainda não legislou a Constituição autoriza que o estado legisle até em princípios gerais e eu insisto nisso. Se houver Ação Direta de Inconstitucionalidade as Assembleias Legislativas [deverão] levar essa discussão ao Supremo Tribunal Federal também. […] Nós, agora Estado, como parte importante, queremos assumir a responsabilidade de editar leis com o que a Constituição nos deu. Na Constituição, acreditem, se pegarmos inciso por inciso do art. 24 vamos ver que ela deu muito aos estados, e tudo isso tem que ficar compatibilizado com o princípio geral que rege a distribuição de competências e que é o princípio da predominância do interesse. Interesse geral é da União, interesse local é do Município. Agora, interesse regional é do estado. Então, é uma guerra em que podemos perder algumas batalhas, mas é uma guerra possível de ser vencida desde que as Assembleias Legislativas, como um todo, comprem essa briga, atacando as leis federais, como disse, que são inconstitucionais e levando até o Supremo, ou seja, perde uma, perde duas, mas a cada uma começa um voto vencido aqui, outro voto vencido ali, daí a outra exagerou muito e a declara inconstitucional, criando assim uma jurisprudência (2004, p. 28 e 36).

Devem, assim, os Poderes estaduais avançar em prol da expansão das competências administrativas e legislativas dispostas nos artigos 23, 24 e 25 da Constituição Federal, e não tentar tolerar que o Executivo – a palavra é forte, mas cabal – sabote essas competências advindas da autonomia ínsita do Estado Federal; sabote essas competências em nome de uma hipertrofia executiva. Dialogar é o caminho que decorre da harmonia entre os Poderes e, nesse diálogo, devem ser envolvidos todos aqueles atores, principais ou coadjuvantes, que participam da produção legislativa: os deputados, o Governador, suas respectivas assessorias técnicas e, por que não, a sociedade civil (em forma de audiências públicas com resultados vinculativos), para se chegar a um consenso que respeite, de um lado, as prerrogativas executivas e os limites orçamentários, e, de outro lado, que respeite a vontade popular apurada nos representantes eleitos pelo Povo para a Assembleia Legislativa, Poder que defende os interesses regionais do Estado.

Para finalizar este estudo, discorramos um pouco sobre o possível papel que as assessorias técnicas podem figurar no desejável diálogo intragovernamental na fase pós-produção legislativa e antes da decisão de sanção ou veto.

 

Necessidade do diálogo intragovernamental como corolário do Estado Democrático de Direito: um intercâmbio técnico-político entre Poderes em prol da sociedade. O papel das assessorias técnicas e o interesse político: estratégia institucional a ser repensada

Para escapar seja do comodismo técnico; ou seja da supremacia do interesse político subjetivo sobre o interesse coletivo; ou seja da mesmice rotineira de vetos que obstam uma frutífera produção legislativa em prol do alargamento da autonomia legislativa dos Estados membros, é preciso estabelecer um diálogo político e técnico permanentes entre as assessorias dos Poderes, insistir em mais e mais compartilhamento, pois nosso federalismo é de cooperação. Portanto, diálogo é compartilhar, cooperar, transigir e acordar entre as pretensões legislativas e as pretensões executivas; firmar um prumo técnico-político na relação entre os Poderes Legislativo e Executivo. Só assim pode-se chegar à real harmonia sonhada pelo constituinte originário. Para se alcançar a harmonia, reivindica-se um intercâmbio técnico-político entre Poderes em prol da sociedade crucial, um perene diálogo intragovernamental; diálogo esse que reside como corolário do Estado Democrático de Direito.
E para se estabelecer esse diálogo, é fundamental não só repensar a estratégia política, mas incrementar o papel das assessorias técnicas de ambos os Poderes. As assessorias técnicas são unidades insertas na Secretaria do Poder Legislativo ou no Gabinete do Governador do estado voltadas para prestar, como o nome já induz, assessoramento técnico não somente jurídico, mas de todo o conteúdo administrativo e legislativo disposto dentro das linhas de competência do estado membro. No caso do estado de São Paulo, o Governador do estado recebe o assessoramento técnico-legislativo da Assessoria Técnico-Legislativa (ATL), uma unidade da Procuradoria-Geral do estado criada por Miguel Reale em 1947 para dar todo o suporte técnico-jurídico ao governador nas questões ligadas ao processo legislativo, desde os aspectos redacionais de técnica legislativa até – e mais importante – na análise da produção pós-legislativa, ao sugerir ao Chefe do Executivo a sanção ou o veto e suas razões. Já no âmbito da Assembleia Legislativa, há o assessoramento técnico prestado pela Secretaria-Geral Parlamentar e, nas questões jurídicas, há o assessoramento por parte da Procuradoria da Assembleia Legislativa.
Por vezes, muitas questões conflituosas e duvidosas sobre o alcance desta ou daquela competência poderiam ser resolvidas por intermédio do diálogo técnico entre essas assessorias técnicas, algo que hoje inexiste, mas que poderia ser vital para um relacionamento harmônico entre os Poderes, pelo menos sob o ponto de vista técnico. Por que não criar uma câmara de diálogo intragovernamental técnico envolvendo as duas assessorias técnicas, e mais os assessores parlamentares dos deputados interessados? Por que não criar uma câmara de arbitragem técnico-legislativa, permanente e competente para encontrar caminhos, soluções e superar arestas na fase entre a pós-produção legislativa e a decisão de sanção ou veto? São sugestões que decorrem da propalada e almejada harmonia e que poderá, com habilidade e estudo, viabilizar o concerto entre os Poderes com a superação de obstáculos técnicos.
O papel das assessorias técnicas e o interesse político, portanto, fazem parte de uma estratégia institucional a ser repensada, pois podem afastar o peso de visões conservadoras e criar um pensamento arrojado e arejado em prol da sociedade.
É verdade, advirta-se, como bem observou Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2004, p. 136), que esse papel há de ser calibrado e limitado às questões técnicas que envolvam a dúvida sobre a constitucionalidade ou conveniência de uma matéria a ser transformada em lei, “pois a influência de um departamento assim organizado, sobre o trabalho legislativo, é, como é fácil de prever, extremamente grande”, porém “essa influência, todavia, pode não ser benéfica se os técnicos a ele pertencentes forem além de sua tarefa específica.”

Manoel Gonçalves não diz, mas, indiretamente, essa observação quer dizer que os técnicos devem se ater às questões eminentemente técnicas, visto que lhes falta a legitimidade política para decidir, sob a égide da conveniência e oportunidade. Dessa forma, o labor técnico há de ser delimitado e supervisionado por aqueles que detêm a legitimidade política, deputados e o governador do estado ou seus auxiliares, os Secretários de estado, uma vez que as questões técnicas podem ser superáveis ou insuperáveis pelo critério profissional e/ou científico, porém as questões políticas ultrapassam os lindes específicos e demandam a decisão última da responsabilidade política, a cargo dos legítimos eleitos.

 

Conclusão

O presente estudo, como se revelou, traduz-se, apenas, em algumas breves notas sobre a pós-produção legislativa e sua análise pelo Poder Executivo antes da decisão de sanção ou veto.

O veto, como vimos, pode descambar para o uso abusivo dessa prerrogativa do Chefe do Poder Executivo e fazer preponderar um poder em detrimento de outro, além de fazer com que essa fronteira da teoria federalista, ainda desconhecida, fique marginalmente sombreada pelo muro do despotismo e do autoritarismo, o que desborda do teor democrático que preenche o regime federativo e as relações não só entre os entes federados, mas, substancialmente, também, entre os poderes internos de um Estado, eis que o regime democrático e republicano contamina, obrigatoriamente, as relações entre os Poderes, como reflexo do Estado Democrático de Direito, que deve sempre, sempre, sempre prevalecer, em qualquer hipótese.

A vida terrena não se pretende eterna, mas a democracia, sim, deve ser imorredoura, imortal.

 

Fonte: https://revista.anpal.org.br/wp-content/uploads/2022/02/Artigo_06_Marcon_Antonio_Hatem_Beneton.pdf