Só a força não resolve

O enfrentamento ao crime organizado exige capacidade de detectar o funcionamento das facções, o fluxo do dinheiro e as relações com agentes corruptos

A segurança pública é um dos maiores problemas que assolam o país, as organizações criminosas têm ampliado seus tentáculos sobre diversas atividades, para além do tradicional tráfico de drogas e da extorsão. Seus efeitos sobre a economia são notórios e na casa dos bilhões de reais. A questão é: como enfrentar esse problema de maneira eficiente?

A proposta usual é o aumento das penas e das políticas de repressão. Inúmeros projetos de lei tramitam no Congresso Nacional para ampliar punições, extinguir visitas íntimas em presídios, reduzir benefícios como saídas temporárias ou livramento condicional. Agentes políticos pregam mais violência contra criminosos, e mandam recados duros à “turma dos direitos humanos”, como o fez o governador do Rio de Janeiro nas últimas semanas.

Em artigos e entrevistas, especialistas enaltecem a gestão de Nayib Bukele, em El Salvador, que, em um plano de combate ao crime organizado, prendeu em poucos dias mais de 80 000 pessoas, suprimiu o direito de habeas corpus, de manifestações públicas e de contato de presos com advogados, autorizou julgamentos coletivos e colocou o Exército nas ruas para garantir a segurança da população. Sugerem que o autoritarismo talvez não seja um preço alto a pagar pela paz social.

É um discurso que garante votos e aplausos, mas não necessariamente resultados concretos. Tiros, balas e prisões podem funcionar em El Salvador, com pouco mais de 6 milhões de habitantes, mas talvez não sejam suficientes para um país com uma população trinta vezes maior, de 203 milhões de pessoas, e dimensões continentais. Em seu programa policial, Bukele prendeu 2% da população, o que significaria colocar atrás das grades 4 milhões de pessoas no Brasil, quintuplicando o já altíssimo número de presos em um país em que as facções criminosas crescem e se multiplicam justamente nos presídios. O PCC talvez agradeça, sensibilizado, o auxílio.

Francamente, não é um projeto viável, seja pelo custo, seja pela ineficácia. É o mesmo que assumir uma empresa com altos gastos, e, para solucionar o problema, cortar suas despesas de forma linear e mandar embora metade de seus funcionários, sem conhecer as razões do desperdício, os desvios na alocação de recursos, e sem uma estratégia clara de gestão de bens e pessoas. O enfrentamento ao crime organizado exige inteligência, capacidade de detectar o funcionamento das facções, suas lideranças, o fluxo do dinheiro e suas relações com agentes públicos corrompidos. Não se combate aquilo que se desconhece.

Parece simples, mas não é tarefa fácil em um país federado, onde estados e municípios pouco compartilham os dados que produzem sobre o crime, onde não existem padrões nacionais de estatística, onde o órgão central de processamento de informações sobre lavagem de dinheiro, o Coaf, tem menos de 100 servidores e uma estrutura precária de funcionamento, onde nem sequer existe uma lei geral de proteção de dados de segurança pública que organize a troca de informações entre agências estatais de forma clara. O Brasil tem mais de 5 000 órgãos ligados à segurança pública que não se conversam, pouco interagem, ilhas vaidosas em meio ao mar revolto do crime organizado.

Se quisermos efetivamente fazer frente às facções, é necessário organizar o sistema de inteligência policial, exigir das unidades da federação o compartilhamento de informações sobre segurança pública, interligar as agências governamentais para facilitar a detecção dos produtos do crime, dos recursos das organizações, no Brasil e no exterior, e fortalecer o Coaf, garantir estrutura material para que o órgão possa processar informações recebidas e compartilhar com as agências de investigação dados consistentes sobre suspeitas de lavagem de dinheiro em setores sensíveis, como operações em criptomoedas, sites de apostas, leilões de arte, fintechs e bancos. Tirar o dinheiro das facções é tão ou mais efetivo que a prisão de seus integrantes, e isso somente é possível com a integração das inteligências.

Também são necessárias ações sobre o sistema prisional. Prender milhares de pessoas sem qualquer política criminal apenas garante mais capital humano às facções, valendo lembrar que essas pessoas estarão de volta às ruas em alguns anos. É preciso executar um plano nacional que integre políticas de educação e trabalho com estratégias de reduzir o espaço do crime organizado nas prisões, como a classificação nacional das facções que atuam nessas unidades, a implementação de rotinas diárias (ou no mínimo semanais) de vistorias de celas para apreensão de celulares, o fechamento das cantinas (centros de poder dentro das prisões), a fiscalização rigorosa da atuação das empresas que prestam serviços nas penitenciárias (muitas vezes ligadas ao crime organizado), entre outros movimentos de fiscalização efetiva da execução da pena.

Por fim, é importante gerir melhor as polícias. Parte considerável do efetivo não está nas ruas, mas em gabinetes, prestando serviços a parlamentares, juízes, agentes públicos, em funções distantes daquelas esperadas de agentes policiais. A gestão eficiente dos recursos humanos, com o uso de novas tecnologias e da inteligência artificial, pode ajudar a identificar o dispêndio de material humano em tarefas menos relevantes, alocar patrulhas, organizar estratégias e indicar locais onde há déficit de atuação. O uso de câmeras em locais públicos, que permitam identificar placas de veículos com registros de ocorrência, com notificação imediata dos agentes policiais, tem aumentado a segurança das cidades, como ocorreu em Araraquara, no interior de São Paulo, uma das cidades mais seguras do país. A tecnologia pode ainda aparelhar as polícias para que possam rastrear criptoativos, quebrar sigilo de meios de comunicação criptografados (com autorização judicial) e detectar movimentos suspeitos em instituições financeiras, fintechs e meios de pagamentos.

Mais do que a força, a inteligência é a melhor arma contra o crime organizado. Claro que prisões e operações ostensivas em territórios ocupados pelas milícias e pelo tráfico são necessárias, mas não são suficientes se não acompanhadas de uma estratégia para identificar como se organizam as facções e estrangular financeiramente suas atividades. A asfixia econômica continua sendo o melhor caminho para enfrentar o problema que nos desafia.

Autor: Pierpaolo Bottini, advogado e professor de direito penal da Universidade de São Paulo

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Ficha Limpa em risco

Written by

Pierpaolo Cruz Bottini

É professor da Faculdade de Direito da USP e sócio do Bottini e Tamasauskas Advogados.