Resgatando as sufragistas brasileiras: contributo à Almerinda Farias Gama
Não é que a Constituição de 1891 terminantemente proibisse as mulheres de votar — não ao menos pela literalidade do caput do seu artigo 70, a determinar que “são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei”. Tampouco era proibido terminantemente que fossem eleitas, pois, de maneira idêntica, o parágrafo segundo do artigo 70 mencionava que eram inelegíveis só os “cidadãos” não alistáveis.
Ocorre que, a despeito de o plural poder muito bem abarcar cidadãos e cidadãs, a interpretação predominante à época era a de que cidadãos compreenderia tão somente os homens, o que consequentemente excluiria as mulheres do rol de alistáveis e elegíveis. A leitura convenientemente restritiva dos dispositivos constitucionais e legais era secundada pela concepção de que, na sociedade, à mulher cabia só o ambiente doméstico, devendo se ocupar das tarefas indispensáveis à reprodução e à manutenção da vida humana.
Com isso, as mulheres eram impedidas de exercer adequadamente sua cidadania.
A primeira estende-se das primeiras cobranças, veiculadas na imprensa feminista ao longo do século 19, por participação política, passando pelos debates na Assembleia Constituinte e pela fundação da primeira associação feminina que viria a cobrar o sufrágio efetivamente universal — a saber, o Partido Republicano Feminino, fundado por Leolinda de Figueiredo Daltro em 1910. Em 1920, a primeira fase chegou a seu fim com a criação da Liga para Emancipação Intelectual da Mulher por Bertha Lutz em 1920. Em 1922, no que a Liga se transformou na Frente Brasileira pelo Progresso Feminino, teve começo a segunda fase do movimento sufragista, que terminaria com o Código Eleitoral de 1932.
A exemplo de Leolinda e Bertha, as mulheres que se engajaram no bom combate pelo voto feminino eram geralmente brancas, instruídas e pertencentes à classe média e à alta da sociedade brasileira. De acordo com Laila Maia Galvão, “a presença em ambientes educacionais e a possibilidade de uma renda por parte de suas famílias e pelo trabalho realizado nas escolas teria impulsionado a entrada no debate político predominado por homens”[2]. A íntima ligação das sufragistas com a educação, inclusive, fez com que a luta pelo voto feminino estivesse fortemente imbricada com a luta pelo acesso à educação.
É o caso de Almerinda Farias Gama, mulher negra, nordestina e trabalhadora.
Ser mulher já é uma condição suficiente para ter sua memória esquecida. Ao longo da história, a presença das mulheres na esfera pública vem sendo obliterada como se sua participação fosse de menor importância. Não eram protagonistas per se, mas tão somente coadjuvantes: eram mães, esposas ou irmãs de um homem. Ao fim desta operação, resta a imagem de que o mundo foi concebido e construído por personagens masculinos.
Almerinda tem sua memória apagada não só pelo fato de ser mulher, mas também por ser uma mulher negra — sujeita, portanto, a um duplo fardo.
Assim confirma a documentação reunida no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Dos 230 arquivos no acervo, só 16 são de mulheres. E, destes 16 arquivos, só o de Almerinda é de uma mulher negra, o que inevitavelmente “nos convida a refletir sobre o silenciamento que se impõe às narrativas e vivências das mulheres negras”[4]. Infelizmente, até entre suas sucessoras, sua história é desconhecida: na Marcha das Mulheres Negras, que reuniu milhares em Brasília para protestar contra intolerância religiosa e racismo, o nome de Almerinda era desconhecido[5].
Almerinda passou por toda a aprendizagem que, à época, era preparação para que as moças de classe média viessem a desempenhar bem o papel de esposa e de mãe. Ainda que letrada, esperava-se que a moça casada permanecesse dentro de casa. No máximo, se imprescindível à subsistência da família, trabalharia de dentro do lar. Desta maneira, suas atribuições domésticas não sairiam comprometidas.
Faltou, todavia, combinar com Almerinda, que, desde tenra idade, alimentava um sentimento de indignação contra a diferença entre homens e mulheres[6]:
Lembro-me de que, quando criança, brincava com um primo (…). Nós éramos crianças — talvez com 10, 11 anos — e dessa discussão amigável surgiu uma dúvida: eu dizia que no casamento o homem e a mulher tinham direitos iguais e igual autoridade, que na casa, no casal, o direito era igual. Ele dizia que era do homem. Eu, não me conformando com aquilo, achei que devia servir de árbitro a nossa avó, que era considerada uma mulher sábia e que de fato era (…) Ela com certo tato, com muito jeito, disse que deveria haver harmonia, mas a autoridade do casal era do homem. Isso me deixou convencida da injustiça dos fatos, mais revoltada com isso.
Sozinha e decidida a manter-se independente, cogitando possibilidades outras que arranjar um novo marido, não lhe restou saída senão buscar um emprego que lhe rendesse um soldo melhor que o de secretária[7]. Nesta busca, deparou-se com a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho.
Diante da proposta de receber menos como datilógrafa unicamente por ser mulher, Almerinda decidiu, em fevereiro de 1929, deixar Belém e ir para o Rio de Janeiro, onde veio a se empenhar na luta pela emancipação política das mulheres.
Com poucos meses no Rio de Janeiro, percebendo que entre as falas de Almerinda e os discursos sufragistas existia uma fina sintonia em favor da igualdade de tratamento jurídico, de tratamento político e também de tratamento profissional, as colegas de pensão convidaram-na a frequentar as reuniões da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e não tardou para que Almerinda caísse nas graças de Bertha Lutz: “Ela [Bertha], sabendo da minha atitude, tomou-me como, quer dizer, normalmente, sem uma maneira oficiosa, ela foi me transformando num dos baluartes ou num dos esteios para ela”[8].
Bertha logo fez de Almerinda assessora de imprensa e relações públicas da FBPF, passando rapidamente a atribuir-lhe funções extras, a exemplo da realização de discursos, da representação em eventos e da participação em movimentos de outras naturezas. Entre tais movimentos sociais, estava o pioneiro Sindicato de Datilógrafos e Taquígrafos.
Diante da possibilidade de representantes dos trabalhadores elegerem deputados para a Assembleia Constituinte que redigiria a Carta de 1934, a fundação do sindicato foi concebida por Bertha e Almerinda para que a Federação contasse com uma integrante sua na escolha de um dos 40 assentos classistas na Assembleia Constituinte[9]:
Deslocar as lutas feministas para o âmbito do movimento sindical permitiria à federação criar um instrumento para ter um de seus nomes numa competição eleitoral e, consequentemente, em um espaço de representação política. Furar esse bloqueio e estar nos lugares de tomada de decisão, mais do que um ato simbólico, permitiria ao movimento de mulheres ampliar os atores no jogo político: além da eleição regular, também poderiam ter um nome do seu grupo entre os representantes classistas.
Sendo ocupante de um cargo ocupado majoritariamente por mulheres e dispondo de contatos na área, Almerinda foi a responsável por mobilizar datilógrafas, taquígrafas e secretárias. Conta a própria Almerinda que o trabalho de mobilização não foi fácil, pois “eram pessoas avulsas que eu consegui com esforço para fazer o número” [10].
Foi por meio da criação de um sindicato que Almerinda, uma mulher engajada na luta pela emancipação das mulheres, pôde participar do processo eleitoral que escolheria os responsáveis pela redação da nova Constituição brasileira e, assim, pôde contribuir à expansão dos direitos das brasileiras. Mas sua participação, entretanto, não se limitou ao inédito exercício da capacidade eleitoral ativa na escolha dos representantes classistas.
De última hora e por conta própria, Almerinda lançou-se candidata à suplente de deputado no intuito de levar adiante os programas defendidas pela Federação nas eleições: equiparação de direitos dos dois sexos, sem quaisquer restrições, a obrigação do governo de prestar assistência à infância, à velhice e à invalidez e a instrução gratuita em todos os níveis. Embora não tenha sido eleita, não nutriu o sentimento de derrota, porque “fiz-me candidata a deputa avulsamente, por mim mesma, sem me aliar a ninguém, embora com a certeza de derrota. Uma simples experiência”[11].
Tanto Almerinda não se abalou que, em 1934, logo depois, lançou-se candidata a deputada federal pelo Distrito Federal, resumindo assim sua plataforma:
Lutando pela independência econômica na mulher, pela garantia legal do trabalhador e pelo ensino obrigatório e gratuito de todos os brasileiros em todos os graus, Almerinda Farias Gama se recomenda pelo seu passado e pelo seu presente aos que lhe vão sufragar o nome. Destaque a cédula anexa e lance-a na urna no próximo dia 14.
Almerinda, embora tendo recebido votação significativa, não saiu sufragada pelas urnas, vindo a se retirar da vida político-partidária até morrer em 1999.
Enfrentando as dificuldades que a vida lhe impôs desde cedo, Almerinda “marcou com sua tenacidade um lugar na história da construção da cidadania feminina, abrindo espaço para a mulher negra participar do cenário político nacional”[12]. E, neste processo, contribuiu com a emancipação da mulher, garantindo a participação feminina no processo de eleição dos deputados responsáveis pelo texto constitucional brasileiro de 1934.
Mas o espaço da mulher negra na política brasileira, conquistado por Almerinda a duras penas, ainda está longe de ser justo. Mulheres negras ainda são sub representadas nos espaços de poder: Em 2022, as mulheres negras, que representam 28% da população brasileira, respondem por 7% das cadeiras nas Assembleias Estaduais, 5% na Câmara dos Deputados e 1% no Senado. São apenas 74 deputadas estaduais ou distritais, 29 deputadas federais e 01 senadora da República.