De como não entendemos a política

Não é fácil entender a política brasileira. Três obstáculos se interpõem ao correto entendimento do que se passa. Tais obstáculos, como veremos, não serão superados a curto prazo, evidenciando que a evolução política de um país é lenta, cheia de percalços e sobressaltos.

Obstáculos fundamentais

O primeiro obstáculo é a precária educação política de nossa população. Mesmo entre os mais letrados, o conhecimento da dinâmica política ainda é superficial, frequentemente distorcido por visões partidárias estreitas, preconceitos arraigados e até ignorância sobre os fundamentos mais básicos do funcionamento das instituições democráticas. Essa deficiência compromete o exercício consciente da cidadania, limita a capacidade crítica dos cidadãos e facilita a proliferação de narrativas simplistas e polarizadas, que acabam por reduzir o debate político a confrontos passionais em vez de discussões racionais e construtivas. Sem uma compreensão clara e objetiva da política, dificilmente será possível romper com ciclos viciosos de manipulação eleitoral, populismo e baixa qualidade da representação democrática.

O segundo obstáculo está na formação intelectual dos formadores de opinião. De maneira geral, a história nos mostra que a intelectualidade brasileira tradicionalmente segue uma matriz predominantemente esquerdista, muitas vezes identificada com visões marxistas ou pós-marxistas, o que acaba limitando o alcance e a pluralidade do debate público. Essa tendência hegemônica tem implicações diretas na maneira como o ensino, especialmente nas áreas das ciências sociais e humanas, é conduzido no país, frequentemente resultando em abordagens enviesadas e pouco abertas à diversidade ideológica.

Como consequência disso, o ambiente acadêmico e midiático brasileiro costuma ser refratário à discussão franca e profunda de ideias alternativas, como o liberalismo clássico, o conservadorismo moderno ou mesmo outras variantes progressistas que não se encaixem rigidamente nos moldes tradicionais da esquerda. Tal cenário acaba empobrecendo o debate intelectual, dificultando a formação de uma opinião pública mais equilibrada e informada, além de reforçar divisões polarizadas e pouco produtivas no campo político e cultural.

O terceiro obstáculo está na livre circulação de notícias. Basicamente, o noticiário – tanto pelo viés patronal quanto pelo viés dos trabalhadores – é contaminado por preferências ideológicas que, muitas vezes, relevam aspectos centrais em favor de suas inclinações políticas. Foi assim quando a opinião publicada exaltava a Operação Lava Jato, mesmo com flagrantes desvios que eram relevados pela grande mídia devido ao suposto caráter depurativo da operação.

O colapso do discernimento

De certa forma, o jornalismo, com honrosas exceções, transformou-se em uma grande feira de opiniões, em uma espécie de jornalismo-espetáculo. Na academia e na ciência, também vemos disputas embargadas por preferências ideológicas. Uma pesquisa junto a professores universitários revelará uma preferência esmagadora por ideias de esquerda. O mesmo ocorre com muitos profissionais de imprensa que entendem seu papel não como o de noticiar o mundo, mas de transformá-lo – muitas vezes com as melhores das intenções.

Em momentos delicados como o que atravessamos neste século, o jornalismo ou a ciência decorada de preferências é tudo o que não precisamos. Sem a capacidade crítica de discernir o joio do trigo, caímos na confusão das preferências e do “opinialismo”. O Brasil, desde 2014, vive em meio a esta confusão. Lula foi preso e depois solto por um erro processual que havia sido questionado anteriormente e não reconhecido. Bolsonaro falou meias-verdades sobre “virar a mesa” e colocou a culpa nos outros. Uns deixam de reconhecer que ocorreram graves desvios na Lava Jato. Outros não acreditam que houve uma conspiração para derrubar o presidente eleito em 2022.

A decisão do reconhecimento do erro processual, descoberto tardiamente, não poderia ser relevada por conta do desamor dedicado ao então presidente Bolsonaro. Nem mesmo os abusos cometidos à luz do dia pela Lava Jato, sob olhos cúmplices e lenientes da imprensa e da justiça, poderiam ser ignorados. Tampouco as movimentações que envolveram badernas, vandalismo e até mesmo tentativa de explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília podem ser relevadas, ações que culminaram na invasão das sedes dos poderes em janeiro. Assim como as penas excessivamente pesadas que estão sendo distribuídas à mão cheia contra os vândalos de 8 de janeiro. Claramente, por fazer prevalecer nossas preferências em detrimento do direito e da justiça, assistimos à confusão institucional que assola o país.

A crise de referências

De fato, os vetores que validavam os fatos entraram em crise, e a perda da confiança é generalizada. Tanto imprensa quanto academia, religião e cultura deixaram de ser referências balizadoras do que é certo ou errado, gerando uma situação de crise absoluta que, por sua vez, gera a leniência com questões absurdas – no Brasil e no mundo. O brutal cinismo de governantes nos dias de hoje comprova que os mecanismos de crítica não funcionam mais. Foram substituídos pelas “lacrações” e pelo exibicionismo das redes sociais.

O não entender a política não é fato novo. Apenas ficou mais complexo com todos os avanços tecnológicos. As pessoas ficaram, ao mesmo tempo, mais perto e mais longe umas das outras. A tolerância – que já não era muita no passado – encolheu. A empatia perdeu momento com o egoísmo em larga escala.

Ainda que não concorde plenamente com suas ideias, Darry Cunningham, em The Age of Selfishness and Billionaires, aborda como o pensamento individualista extremo impactou negativamente questões sociais, econômicas e políticas, gerando desigualdades profundas, crises financeiras recorrentes e enfraquecimento da solidariedade social. O egoísmo institucionalizado é a tônica, mesmo quando “travestido” de boas intenções.

Uma sociedade de contradições

O crime organizado está se apropriando de uma sociedade desorganizada, que sempre buscou uma utopia meio mozarela, meio calabresa. Um pouco capitalista, mas nem tanto. Um pouco socialista, mas nem tanto. Também adicta às drogas, mas refratária às políticas de segurança pública – pelo menos até o dia em que lhe roubem a carteira ou o relógio.

Terminamos capturados pelo corporativismo que hoje, por exemplo, propõe que uma pessoa possa alegar sofrer acidente de trabalho por ter sido mordida pelo seu próprio cão quando trabalhava em home office. Ou que considera distúrbios psicológicos como justificativa para não voltar a trabalhar três dias no escritório, pois, “psicologicamente”, prefere ficar trabalhando em casa.

Somos uma sociedade que se revela obtusa ao permitir, com leniência, o império do anonimato nas redes sociais. Aliás, volto à mídia neste tema que – mesmo sujeita a controles adequados e responsabilizações penais – ficou no muro quanto ao anonimato nas redes sociais, em discussão sem fim em nosso Legislativo.

Enfim, as prateleiras de incongruências ocupam os hipermercados mentais da sociedade brasileira. Da boca para fora, somos democratas floridos com um discurso libertário. Mas que, na prática, resulta em uma pátria de privilégios, sinecuras, clientelismo, corporativismo e fisiologismo, que adora mordomias, isenções, descontos e salas VIP sem pagar.

O futuro em risco

Quais os riscos que corremos? Muitos. O principal deles é continuarmos a ser um país do “mais ou menos”, de um futuro que chega em compotas com pedaços que variam de sabor e relevância. Mal comparando, o Brasil seria um restaurante de buffet a quilo cujas opções variam entre excelentes e abjetas, que está envelhecendo antes de dar certo.

Veremos, em décadas, o Brasil se tornar uma espécie de gerontocracia pendurada em um sistema previdenciário precário, hospitais públicos superlotados, carros blindados e condomínios fechados para os idosos abonados. Em um aprofundamento dramático da desigualdade.

Esse é o preço por não entendermos a política e não agirmos para melhorá-la.

Fonte: Revista Conjuntura Econômica | Abril 2025

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Mulheres na política

Written by

Murillo de Aragão

Fundador da Arko Advice. Colunista da revista Veja. Advogado, mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela UnB (Brasília), é professor- adjunto da Columbia University (Nova York).